O Marco Legal dos Games é a grande notícia do ano na indústria de games envolvendo o poder público. A lei, sancionada na última sexta-feira (3) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, regulamenta as atividades envolvendo produção e comercialização de games no país.

Mas o projeto, que passou mais de dois anos em tramitação no Congresso, passou por uma jornada tortuosa, na qual o projeto ganhou emendas para incluir fantasy games (jogos nos quais usuários montam times fictícios com base em competições reais), o que gerou uma intensa mobilização do setor para debater a pauta na Câmara dos Deputados e no Senado, pelas suspeitas de uma cooptação do projeto pelo setor de apostas.

O The Enemy conversou com Márcio Filho, presidente da Associação de Desenvolvedores de Jogos Digitais do Estado do Rio de Janeiro (Ring), que atuou, em conjunto com outras associações estaduais de desenvolvedores e a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Games (Abragames) na articulação entre o setor organizado dos estúdios brasileiros e parlamentares para transformar o Marco Legal dos Games na lei que, depois de anos, dá à indústria e ao setor de desenvolvimento de jogos no Brasil as bases para funcionar oficialmente.

A trajetória do Marco Legal dos Games

O Marco Legal dos Games foi apresentado como projeto de lei em 2021 pelo deputado Kim Kataguiri (União-SP) e, ao longo do ano, tramitou em comissões da Câmara dos Deputados e, à época, passou despercebido pelas associações de produção de jogos no Brasil. “O setor olhava para outras coisas e ainda não tinha entendido, ou se organizado, para poder olhar de fato a tramitação de temas no Congresso Nacional”, relembra.

O projeto acendeu um alerta no setor em 19 de outubro, quando o relator do projeto de lei, Darci de Matos (PSD-SC), pediu o encaminhamento da discussão a Comissão de Finanças e Tributação (CFT) da Câmara, e propôs uma alteração que incluía os fantasy games no texto. No mesmo dia, o texto com as alterações foi aprovado pela Câmara e enviado ao Senado.

De acordo com Márcio Filho, a aprovação na Cãmara causou um susto. “Já tínhamos grupos e interagimos para falar de outras coisas. Quando surge o tema, e a gente consegue dar gravidade, todos ficaram: ‘o quê? Como assim, passaram com um trator por cima da gente. E agora? Como faz?’. De alguma maneira, as experiências políticas do grupo ajudaram a explicar que esse era o problema das nossas vidas”, conta.

Márcio Filho, presidente da Associação de Desenvolvedores de Jogos Digitais do Estado do Rio de Janeiro (Ring)

Márcio Filho, presidente da Associação de Desenvolvedores de Jogos Digitais do Estado do Rio de Janeiro (Ring)

 
@erickmidias

As maiores preocupações eram a falta de reconhecimento de jogos como cultura, por parte do texto original do projeto de lei, e uma possível associação do mercado de apostas esportivas com o setor de games. “A gente estava acabando de passar por um processo de convencimento de secretarias municipais e estaduais para colocar jogos na Lei Paulo Gustavo. Estávamos fazendo um esforço para concorrer de igual para igual com o resto do mundo no que diz respeito a fomento, e uma lei dizia que apostas se equiparavam a jogo eletrônico? Foi algo que nos preocupou muito”, argumenta o presidente da Ring.

A partir daí, as associações começaram a se organizar para lidar com o ‘jabuti’ incluído no Marco Legal dos Games, o que inclui a articulação das associações estaduais junto aos senadores em suas bases políticas, além de desacelerar a tramitação do projeto.

O ponto de virada aconteceu em 20 de setembro de 2023, quando desenvolvedores, representantes de associações de fantasy sports e pesquisadores participaram de um debate público no plenário do Senado. Um dos debatedores no plenário, Márcio descreve a sessão como um marco para a história do setor de games no Brasil. “Ali, a gente faz todo mundo de tudo quanto é cor partidária discutir de maneira produtiva sobre um tema de interesse do país”, registra.

O levantamento dos conflitos envolvendo os dois setores no mesmo projeto de lei levou os senadores a adiarem a aprovação do projeto de lei e o seu encaminhamento a outras comissões do Senado, onde ele recebe as substituições que retiram os fantasy games do projeto e integram o setor de games de forma ainda mais abrangente. 

“Daí, a gente consegue produzir de fato um conjunto que vem das bases: associações estaduais, universidade, grupos de estudo, a Abragames, que produzem um conjunto de orientações legislativas que acabam, de alguma maneira, aparecendo na emenda da senadora Leila Barros (PDT-DF).”

A articulação ampla para a aprovação do Marco Legal dos Games conseguiu também um feito raro: uma discussão racional envolvendo políticos do governo e da oposição. “Talvez o setor de games no Brasil tenha tido a capacidade de fazer esse diálogo construtivo, propositivo, com todas as camadas da sociedade, por dentro da política. Quando a gente vê isso acontecendo, é um grau de satisfação enorme, porque significa que, de fato, a gente conseguiu produzir, a partir da mobilização popular, com meios de imprensa, com a visita aos Senadores, e ao governo, um consenso, não apenas sobre o conteúdo, mas sobre a importância do tema”, finaliza Márcio Filho.

O que é o Marco Legal dos Games

O texto final do Marco Legal dos Games regula a fabricação, importação, comercialização, desenvolvimento e uso comercial de jogos no país, garantindo à produção nacional de games os incentivos destinados a outros tipos de obras do setor da cultura nacional.

A lei também reconhece oficialmente as atividades pertencentes à produção de games no Brasil, como suas empresas e profissões, o que permitirá o enquadramento deste tipo de negócio em regimes de tributação especiais para microempresas, como o Simples Nacional. Por fim, a lei também regula o uso de jogos para fins didáticos e responsabiliza empresas por casos de discriminação e assédio em jogos online.

 

 

Na prática, o Marco Legal dos Games deve abrir caminho para transformações na indústria brasileira, de acordo com Márcio Filho. “A primeira delas, em até seis meses, é a regulamentação da Lei, pois o governo terá de criar o Cadastro Nacional de Atividade Econômica (CNAE) para empresas de jogos”, explica.

Nessa etapa, o governo vai determinar, em reuniões com o setor, todas as profissões e empresas relacionadas ao desenvolvimento de jogos de um ponto de vista tributário e trabalhista. Outro ponto importante destravado pelo Marco Legal dos Games é a regulamentação da entrada de kits de desenvolvimento de jogos para consoles (devkits) no país. 

Toda essa atividade burocrática deve garantir estabilidade jurídica para investimentos no setor de games no Brasil. “O setor existe, está regulado e é reconhecido pelo governo. Portanto, traz segurança, para que eu possa colocar meu dinheiro e não ser surpreendido. As regras do jogo estão postas”, define Márcio. Com isso, o governo também tem condições para fazer editais de fomento e incentivo específicos para o setor de games, o que, na visão do presidente da Ring, deve acontecer a partir de 2025.